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Secretariado ativista: assessorando a solidariedade social em tempos de pandemia

Por

Maricilene Isaira Baia do Nascimento

Doutoranda em Ciência Política na Universidade de Brasília (UnB)

Membro da Coordenação Científica do COMSECDF



Quem disse que, para fazer o bem, organizar não é necessário? O bem bem feito é resultado do entrelaçamento do engajamento em prol de uma causa social com a experiência em gestão – em especial, com a gestão secretarial: “A gente foi com a intenção de levar 25 cestas, só que, na hora, apareceram mais de 60 pessoas. ‘[...] meu Deus, e agora, como é que a gente vai fazer?’ porque a gente só tinha 25 cestas”, relata Dayane Sousa, Secretária Executiva, na experiência desafiadora na coordenação da ação social no bairro do Curuçambá, periferia na cidade de Ananindeua, no estado do Pará, desenvolvida pela comunidade cristã da qual faz parte, no âmbito do projeto “Sementes do Amanhã”. Dayane é uma profissional de secretariado que, em tempos de Covid-19, doa proativamente, em um contexto não-convencional da prática dessa profissão, sua experiência à solidariedade social: ajudar mulheres e crianças em situação de vulnerabilidade. Nessa experiência contextualizada, situamos um “secretariado ativista”.


O projeto nasceu em 2012, com foco no ensino bíblico para crianças, as ‘sementes do amanhã’, no referido bairro: “eu participo desde a adolescência”, situa a entrevistada. “À priori, a gente iniciou com as crianças, porque a gente acredita que é por elas onde se inicia um mundo melhor”; “a gente não desenvolve apenas assistência social com elas, a gente também faz a parte evangelística”. Além dos objetivos do projeto, Dayane descreve a divisão de trabalho com as assistidas: “A pastora faz dois grupos: um grupo fica com as crianças – eu fico com elas, outras meninas me ajudam – e a pastora, com outras mulheres, ajudam as mães das crianças”. Especificamente, a entrevistada caracteriza que as mães atendidas no projeto estão entre 15, 45-60 anos de idade. As crianças, idades entre 01 e 12 anos.

Em conjunturas críticas, em situações de crise, assistimos e experienciamos a inúmeras mudanças. Especialmente, assistimos e experienciamos a mudanças de lugares, de posições e de propósitos. A pandemia de Covid-19 trouxe à tona o distanciamento e a lentidão do Estado para gerar soluções e assistência às classes mais populares – as mais atingidas pela doença e por toda a crise emergente. Em decorrência desse distanciamento e lentidão, o Brasil e muitas outras partes do mundo puderam testemunhar a expressiva mobilização da sociedade civil no combate à disseminação do vírus e ao agravamento da escassez de recursos básicos à sobrevivência – alimentos, medicamentos, entre outros. Alguma força tinha de substituir a ausência e a lentidão do Estado. Houve, então, uma mudança de lugar.

Assim como ocorreu com muitas outras iniciativas populares, nesse contexto, Dayane avalia que o projeto no qual participa precisou mudar de escopo, de objetivo principal. As necessidades eram outras, além das espirituais: “[…] a distribuição de cestas começamos mais efetivamente agora, este ano, por conta da pandemia. Em abril, foi a primeira vez que fomos lá, e, [...] no final de junho, fizemos a segunda remessa”. A ação, portanto, experimentou uma mudança de propósito.

A mudança de lugar e de propósito propôs desafios que marcaram a trajetória de Dayane. Em toda a sua experiência no projeto, nunca foi tão necessário doar seu conhecimento em secretariado. E isso se deu por dois fatores. Primeiro, a liderança da comunidade evangélica da qual faz parte era do grupo de risco. Portanto, foi-lhe confiada a coordenação da ação de entrega das cestas, do planejamento à prestação de contas, era a oportunidade de mudança de posição: “eu que fui representando, substituindo a liderança da igreja. Tive de ‘meter a cara’ (risos)”. Segundo, o número de mulheres a atender aumentou. A entrevistada descreve que o grupo atendido antes da pandemia era em torno de 30 mulheres. Na primeira oportunidade de entrega das cestas, a prioridade foram as que já faziam parte do projeto: “Aí decidimos ‘vamos priorizar as mulheres do projeto’”. […] na hora tivemos de fazer uma mobilização, reuni com os meninos que foram me ajudar e a gente entregou as 25 cestas para as mulheres do projeto”. Complementa ainda Dayane: “E as pessoas, as demais que foram, cadastramos o número de telefones delas, a idade, tudinho, e fizemos um grupo paralelo no WhatsApp, informando o dia que a gente ia levar as outras cestas. […] Na verdade, eu nem esperei ela [a pastora] falar para criar o grupo, eu mesma criei e depois eu comuniquei. Pensei comigo: ‘vou logo adiantar o serviço’”.

Em tempos de avanço nas tecnologias da informação e comunicação, ainda há os que não têm acesso aos recursos dessa era. O ativismo social, muitas vezes, enfrenta a desigualdade interseccional daquelas que são assistidas pelo bem. O/a ativista secretarial também experiencia tais desigualdades e tem de ser criativo/a, compreensível e articulado/a: “E, próximo do dia, para fazer esse projeto, essa ação, eu mesma liguei para algumas pessoas que não têm WhatsApp. Por incrível que pareça, há pessoas que não têm acesso à internet, infelizmente; ainda mais em um bairro necessitado, onde algumas mulheres lá são vulneráveis. Aí não tínhamos como fazer pelo WhatsApp, eu liguei mesmo para lá e elas falaram: ‘a gente vai’”.

Era o encontro das desigualdades com a necessidade de organização e mobilização: “falei com Sara, que é também a nossa assistente, ela fez algumas coisas pra gente. Ela fez o banner, fez os folders, ela também entrava em contato com algumas pessoas para irem para lá”. Descreve mais: “[No primeiro encontro], a gente viu que havia muitas pessoas: ‘vai ficar fora do controle’, eu imaginei logo. Vai ficar fora do controle só chegar lá e distribuir as cestas, mesmo porque a gente não tinha um quantitativo muito certo de quanto a gente ia levar e de quantas pessoas apareceriam – porque no mês passado a gente levou e foi surpreendido com além do que a gente tinha levado”. Portanto, um outro desafio estava colocado: aproximadas 25 cestas não seriam suficiente para atender ao quantitativo de inscritas para a próxima remessa. Era o momento de outra articulação: fazer parcerias pelo bem.

Sob intermediação de uma pessoa membro da comunidade cristã da qual faz parte, “[...] uma empresa entrou em parceria com a gente, a Dismelo – ajudaram com a maior parte das cestas arrecadadas”. Para conseguir essa parceria e alcançar as muitas famílias cadastradas, Dayane mobilizou o projeto de ação para análise da empresa parceira, principalmente na descrição dos protocolos que seguiriam no contexto de pandemia: “a gente fez um grupo com eles [da empresa parceira] no WhatsApp, informamos tudo o que a gente ia fazer lá – o dia, o horário, como nos importaríamos com todo esse protocolo de higiene, que tem usar máscara, álcool em gel, e também [distância] para não aglomerar muito”. A entrevistada também mencionou o aconselhamento que fizeram de as mães evitarem de levar as crianças no dia: “Como a gente não ia fazer uma programação com as crianças no dia, a gente preferiu para não aglomerar não levar as crianças. As crianças ficam muito dispersas”.

Como chegar até lá? Quais ferramentas nossa secretária ativista precisou mobilizar? Dayane é Secretária Executiva Trilíngue formada pela Universidade do Estado do Pará e, atualmente, trabalha recepcionando autoridades e cidadãos no Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região, em Belém do Pará. Há uma outra cereja do bolo: Dayane também reside em um bairro da periferia em Belém, na Terra Firme, e convive bem de perto com as necessidades: “A gente vai da Terra Firme para chegar no Curuçambá”. Conforme o contexto enfrentado, moldamos o secretariado e tudo o que ele mobiliza. Talvez ir de um lugar para outro na sua experiência cidadã não fosse o maior desafio, mas, sim, secretariar de um lugar para outro: “É uma relação de adaptação, até porque a gente estava […] [na periferia], no Curuçambá. Aí a pastora disse: ‘não vão muito pomposos’. A gente já tem esta noção: eu vou pra lá, [mas] eu não vou pra lá chegando com um computador, o celular ainda vai porque tu tens de registrar todas as coisas. Mas aí eu não posso chegar lá e...já pensou, [por exemplo], se eu fosse com um tablet? Eu poderia gerenciar em um tablet a listinha deles, ia ficar ótimo, facilitaria pra mim. Mas, lá na hora, eu poderia até constrangê-los, porque, tipo assim, eu estaria muito ‘chique’ para uma realidade que não condiz. Então, a gente tinha de se adaptar. Aí eu fui com o papel mesmo, com a caneta, já estava tudo estabelecido mesmo, tudo organizadinho […]”.

Moldando o secretariado com sua sensibilidade e perspicácia, e envoltando-o também de caridade, descreve, com tom de instrução, o processo de entrega: “Aí eu disse ‘gente, agora faremos a distribuição das cestas. Primeiro, organizaremos as mulheres do projeto, depois, a gente vai entregar para outras pessoas que não receberam no mês passado’. A gente já estava com as duas listagem, na verdade: das que estavam cadastradas e mais das pessoas que eu cadastrei depois. Aí eu fui chamando pelo nome delas tudinho e aí fui anotando quem já havia recebido – foi algo muito rápido e mais organizado. Aí eu vi a questão da organização, a gente teve controle, a organização o e controle, e mais a questão de execução, a gente mobilizou esse fazer”.

A comunidade, que contou com o profissionalismo e a irmandade de Dayane, conseguiu arrecadar e entregar por volta de 80 cestas. Ao final de toda a entrega, a entrevistada desenvolveu um relatório de prestação de contas e o apresentou aos/às envolvidos/as com a ação. “Foi um momento novo para mim”, lembra Dayane. A satisfação também foi grande ao lembrar: “Elas ficaram tão animadas, estão entrando até no projeto oficial!”. E, como toda/o profissional que experimenta um desafio na sua trajetória, avalia: “A gente aprende muito”. Mas a sua pitada de expressão paraense também não poderia faltar: “Égua, foi muito legal!”.

O Comitê de Secretariado do Distrito Federal parabeniza a colega de profissão Dayane Sousa por nos inspirar a doar, neste e em outros tempos, nossos aprendizados e conhecimentos em secretariado em prol do bem, da solidariedade, do próximo!


Informações adicionais: A entrevista foi realizada no dia 03/07/2020, via telefone. A ação é realizada pela Igreja Batista do bairro da Terra Firme-Belém/PA, que realiza, desde 2012, o projeto “Sementes do Amanhã”, voltado para trabalho de recreação e aprendizado bíblico com crianças, no bairro do Curuçambá-Ananindeua/PA. Fotos autorizadas para divulgação pela liderança do projeto.


Figura 1: A equipe do projeto “Sementes do Amanhã”, na entrega da 2ª remessa de cestas básicas.

Fonte: Entrevistada.



Figura 2: Cestas arrecadadas na 2ª remessa, em parceria com a empresa Dismelo

Fonte: Entrevistada.



Figura 3: Dayane, nossa ativista secretarial, na entrega da 1ª remessa

Fonte: Entrevistada.



Revisão: Jefferson Sampaio.

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