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O que você considera ser uma pessoa poderosa/que tem o poder na sua organização?O que você considera


Maricilene Isaira Baia do Nascimento

Doutoranda em Ciência Política

na Universidade de Brasília

Membro da Coordenação Científica do Comitê de Secretariado do Distrito Federal

Na posição de pesquisadora que interage com e desenvolve estudos sobre as relações entre Estado e Sociedade, às vezes deparo-me refletindo sobre depoimentos profissionais acerca da natureza das relações entre as diferentes pessoas intra e interorganizacionalmente (seja nas organizações do Estado, seja nas organizações privadas), e também sobre situações que já vivi em ambiente organizacional. Apesar de haver um movimento difusor das práticas democráticas de desenvolvimento das relações sociais em sociedade para as relações sociais em contextos organizacionais, as muitas desigualdades que ainda persistem na vida social (socioeconômica, de raça, de gênero, por exemplo) ainda são padrões de recorrência que influenciam a construção de padrões para definir quem “pode” e quem “não pode” nas organizações. Entre muitos fatores, um movimento crítico de profissionais sobre o que define “a boa/o bom profissional que pode e que não pode fazer/ser isto ou aquilo” é quase que obrigatório para reproduzir percepções/conceitos/filosofias que mitiguem tais padrões balizados pelas desigualdades sociais para criar e reproduzir padrões outros de poder mais humanos e democráticos.

Curiosa para colher a percepção de profissionais sobre quais padrões individuais mobilizariam para definir/descrever o que seria uma pessoa poderosa/que tem o poder na organização na qual se encontram, convidei especificamente algumas/alguns para fazer tal descrição/definição. Mas, antes de entrarmos nesse debate perceptivo dos respondentes, é oportuno que respondamos uma pergunta mais básica: o que é o poder? O que teóricos entendem sobre a natureza do poder?

A natureza do poder

Poder diz respeito à capacidade dos atores de engajar outros a cooperar. Latour (1986) argumenta que quando um ator simplesmente tem o poder nada acontece; sendo assim, esse ator é menos poderoso. Em contraste a isso, quando um ator exerce o poder, são outros que performam a ação. Desse ponto de vista paradoxal trazido por ele, poder não é algo que se possui ou acumula. Poder é consequência e não causa, ou pelo menos deve ser considerada mais como a primeira coisa. O pressuposto paradoxal pragmatista aqui é: ou um ator tem o poder na prática e não tem o poder (outros têm), ou esse ator tem o poder na teoria e não tem.

O processo de empoderamento defendido por Latour atravessa dois estágios: poder sobre alguma coisa ou alguém é uma composição feita por muitas pessoas, que ele chama de mecanismo primário, e atribuído a um deles (mecanismo secundário). A partir disso, conclui: o montante de poder exercido, portanto, varia não de acordo ao poder que alguém tem, mas ao número de pessoas que entram na composição. Latour (1986) rotula esse processo de empoderamento como sendo um modelo de tradução: o poder bem-sucedido é resultado das ações de uma cadeia de agentes a partir das quais o poder é traduzido de acordo com seus próprios projetos. Nesse processo de tradução do poder que considera as propriedades das ações de uma cadeia de agentes, que Foucault (2000) sugere que façamos três perguntas para nos reportarmos ao processo de empoderamento: (1) como o poder é exercido? (2) o que constitui o poder? (3) como analisar as relações de poder?

Começar investigações sobre poder a partir do como, argumenta Foucault (2000), é intencionalmente partir de um ponto de vista ontológico que limita alguém a descrever efeitos sem nunca relacionar tais efeitos com causas, ou seja, é partir da suspeita de que poder não existe, não é dado. Aliás, é por isso que ele prefere referir-se a relações de poder e não simplesmente a poder. Sendo assim, é necessário que se entenda o poder a partir do como ele é exercido.

O que constitui o poder? Foucault (2000) considera que poder não é uma mera relação entre pares, mas também é o modo como uns agem sobre os outros. O que define uma relação de poder é que é um modo de ação que não age diretamente e imediatamente sobre outros, mas é agir sobre a ação de outros. Aqui, apesar de ele não focar muito no termo, é que se pressupõe a necessidade da existência de recursos como fonte de poder. A partir disso, apesar de ser inscrito num campo de escassas possibilidades disponíveis em uma dada estrutura permanente, argumenta que o poder só existe conforme exercido.

Allen (2007) mais explicitamente relaciona recursos e poder. Assim como Latour (1986) e Foucault (2000), compartilha do pressuposto de que não há poder pré-existente, aguardando para ser dominado ou desencadeado, assim como não há resultados pré-determinados baseados sobre a distribuição desigual do poder. Em vez disso, em contraste a uma visão de poder que mensura a efetividade de uma organização pelo tamanho e magnitude dos recursos a sua disposição, argumenta que recursos e poder não são a mesma coisa: a abundância do primeiro não pressupõe que indivíduos ou organizações serão capazes de trazer uma mudança social efetiva, porque o que trabalha melhor em uma situação não se pode conhecer antecipadamente, apenas na prática. Portanto, o que importa é como os recursos são usados para produzir um efeito que se denomina poder.

Sendo assim, para se produzir um efeito que se denomina poder, recursos têm de ser manejados pelo que Fligstein (2001) considera de atores estrategicamente habilidosos. A partir de uma visão interacionista simbólica, mais especificamente, argumenta que é a combinação de regras e recursos pré-existentes, e as habilidades dos atores que trabalham para produzir e transformar campos (organizacionais). Esses atores sociais habilidosos traçam suas ações dependendo da organização corrente do campo e do lugar onde ocupam naquele campo.

A definição de habilidade social destaca como certos indivíduos possuem uma capacidade cognitiva altamente desenvolvida para ler pessoas e ambientes, enquadrando linhas de ação, e mobilizando pessoas no serviço dessa ação de “enquadres” (Fligstein, 2010). Esse enquadre envolve entendimentos que oferecem outras identidades a atores. Para descobrir e propagar esses frames, é inerentemente uma habilidade social, um tipo de habilidade que acentua a dimensão cultural ou construída de ação social. Fligstein (2001) define que identidades referem-se ao conjunto de significados que atores têm que define quem eles são e o que eles querem em uma situação particular.

Nessa mesma linha, Abers e Keck (2013) argumentam que, ao participar de diversas atividades em interação com diferentes agentes, em diferentes arenas, em diversos níveis, atores organizacionais desenvolvem novas capacidades e alcançam reconhecimento. A partir do desenvolvimento dessas capacidades e do alcance desse reconhecimento, compreendem que esses atores acumulam um tipo de poder na prática, uma autoridade prática, que lhes permite influenciar as ações dos outros em prol de algo. Autoridade prática é um tipo de poder em que a capacidade para resolver problemas e alcance de legitimidade/reconhecimento que possibilita atores influenciar mudanças/tomadas de decisão.

O que você considera ser uma pessoa poderosa/que tem o poder na sua organização? Diferentes discursos para a construção de uma mesma narrativa sobre poder

A partir de um breve aparato teórico, é possível analisar o que os/as respondentes da pergunta proposta consideraram como resposta. Foram 16 (dezesseis) respondentes. As respostas foram colhidas entre 05/11/19 e 11/11/19 via aplicativo WhatsApp. As/os respondentes foram convidadas/os individualmente. Os/as respondentes são formados e/ou atuam e/ou têm experiência na área de secretariado executivo, em diferentes naturezas organizacionais (públicas, privadas).

Antes de qualquer distinção analítica que apontaram as respostas, em comum, os respondentes partem de uma natureza alinhada sobre o que seja poder: poder é uma conquista, é uma construção. E como poder, assim como qualquer outro conceito, é uma construção do que o indivíduo interpreta pragmática e ideacionalmente, os/as respondentes mostraram diferentes perspectivas sobre o que seja um ator/atriz organizacional que pode ser considerada/o poderosa/o. Essas diferentes perspectivas partiram do quão alinhados os atributos que mobilizaram estavam teoricamente (mesmo que de forma ‘inconsciente’). A partir disso, cinco perspectivas puderam ser encontradas (Quadro 1). E é importante colocar que os/as respondentes de alguma forma são híbridos, mas deixaram alguns aspectos mais evidentes em suas descrições.

Não pretendo esgotar a análise tentando mostrar onde cada resposta especificamente se localizou nas categorias geradas, mas criar uma narrativa sobre o que seja o poder nas organizações a partir de diferentes elementos que os discursos mobilizaram.

Sendo assim, poder é um efeito que vem das estratégias que os atores mobilizam, é um efeito de habilidade social, característica de quem tem conhecimento do ambiente onde trabalha e das pessoas que nele se encontra: “O primeiro objetivo que o colaborador deverá cumprir para alcançar a influência e o poder dentro do ambiente laboral é conhecer a organização para a qual trabalha. É necessário conhecer todos os setores da empresa, conhecer outros colaboradores e não ficar restrito somente na sua área de atuação” (Opinião A). Mais especificamente, é a pessoa que sabe ler pessoas e ambientes e sabe criar “enquadres organizacionais” para mobilizar diferentes pessoas em prol das ações que precisam ser realizadas: “[...] aquela [pessoa] que consegue agregar a sua volta diversos tipos de pessoas com diferentes personalidades; essa pessoa detém de um poder incrível, pois a maioria precisa dividir para administrar/governar” (Opinião F). E provavelmente consegue agregar porque, além de saber enquadrar diferentes particularidades individuais, é aquele/a que “[...] domina o trabalho de todos os seus liderados e os motivam a darem o melhor, assim como ele faz” (Opinião H). “Uma pessoa que conhece bem sua equipe” (Opinião G).

Quando um ator organizacional, qualquer que seja, independentemente da sua posição hierárquica, participa de diversas atividades, e interage com diferentes agentes, em diferentes níveis organizacionais: “[...] consegue (...) desempenha[r] um papel de liderança em todos os níveis da organização, influenciando a opinião da maioria, desde a equipe de apoio até os tomadores de decisão. Esta pessoa, não precisa ser, necessariamente o/a chefe ou presidente da companhia” (Opinião J). Mas, para isso, alguns atributos de legitimidade social reconhecidos são indispensáveis ao ator que pode ser considerado poderoso. Sendo assim, além de “[...] conhece[r] o assunto, tem firmeza ao falar e possui características do bem. É educada, consegue assumir seus próprios erros e é humano diante dos erros dos outros” (Opinião L); “[...] aceita as responsabilidades, se esforça para encontrar soluções e se preocupa sempre em aprimorar suas habilidades” (Opinião A). E, mesmo sabendo que “é capaz de muita coisa”, “que pode ir muito mais além”, sabe “entrar e sair dos lugares” (Opinião M).

Apesar de atributos sociais reconhecidamente legítimos constituírem um ator poderoso, saber buscar e usar evidências concretas/técnicas é uma capacidade que também tem de estar relacionada à capacidade de influência, que nem sempre está correlacionada ao nível hierárquico organizacional: “Uma pessoa que tem poder na organização, é simpática, prestativa, agradável, com um ótimo relacionamento interpessoal, e usa sua influência junto aos gestores de forma positiva, [no entanto] sempre embasando seus posicionamentos em dados e análise concretas” (Opinião N). É aquela que, a partir da capacidade de “analisa[r] as situações e busca[r] embasamento para a solução (...), mostra o sentido da ação ou mudança, motivando seus colaboradores a participarem efetivamente dos processos. Isso nem sempre está associado a figura do Gestor, mas àquele que realmente se preocupa com o futuro da organização e dos membros das equipes” (Opinião O). “É aquela [pessoa] que detém [o] conhecimento” (Opinião D).

Como ter o poder independe necessariamente do lugar onde estar localizado na organização, e, antes de tudo, ser uma construção individual e coletiva histórica, pode-se concordar que “[...] ninguém nasce poderoso ou poderosa, tornamo-nos ao longo da vida” (Opinião C). E não é o que um ator tem que gera influência, é o que ele faz com o que tem; ou seja, não é o tamanho do recurso que o torna influente, mas a habilidade de usar esses recursos. É a “busca [por] novas habilidades” (Opinião C). Mais especificamente, é o que sabe intersecionalizar recursos, regras e habilidades sociais para gerar principalmente “legado organizacional simbólico” ao ponto de ser um padrão comportamental no ambiente: “o que me faz considerar que uma pessoa detenha o poder dentro de uma organização [...] é ser um exemplo naquilo que faz, que consegue transmitir seu propósito de maneira clara, inspirar as pessoas a executar as metas propostas, desenvolver seus liderados, possuir inteligência emocional. Pessoas que inspiram, [que] detêm o poder de desenvolver pessoas” (Opinião B), “[que] sabe que o que dará resultado é o trabalho em equipe” (Opinião K).

Poder está tão ligado ao legado simbólico organizacional, que uma pessoa considerada poderosa “[...] deixa uma herança, [e] é lembrado/a por aquilo que acredita e age para conquistar, [...] deixa sua marca por onde quer que passe, [e é] lembrada como alguém que faz a diferença” (Opinião E); “inspira, com seus exemplos, suas habilidades e altitudes, uma equipe a atingir metas e objetivos” (Opinião G). É um legado que gera um padrão organizacional porque além de “acredita[r] em si mesma e no seu potencial, com bastante positividade, autenticidade, comprometimento [...], [consegue] transmitir todas essas habilidades aos seus seguidores de forma transparente, sempre passando seus conhecimentos com simplicidade, na garantia de atingir seus objetivos em busca do sucesso” (Opinião I). A pessoa que pode ser considerada poderosa é aquela que “deixa a sua marca de forma tão forte e única que chega a se tornar insubstituível por tudo que é e faz, [...] tem consciência do seu valor como profissional e ser humano, mas, acima de tudo, reconhece o valor do outro, sendo o seu ponto forte a colaboração” (Opinião K). Um ponto importante dessa corrente de opinião é que o poder simbólico gera resultado organizacional concreto.

Algumas considerações

O objetivo mais moral que científico (talvez) deste texto foi mostrar que poder não é dado, pré-existente para quem vive na realidade social. É algo que, mais importante do que o ator acha, é o que os outros acham (para o poder ter sentido, esse aspecto é importante). O poder é relacional, surge na relação. Se alguém considerar que alguém detém o poder sem o reconhecimento do outro, o poder se torna um conceito vazio. O poder é um efeito de uma cadeia de agentes.

Algo que chamou atenção nas respostas foi o fato de que percepções democráticas alcançam quem está no interior das organizações. Poder fazer, poder ser, não está ligado a cor, raça, gênero, está ligado à capacidade de mobilizar pessoas, e capacidade na sua mais variada fonte de recurso: atributos cognitivos, relacionais, técnicos, estratégicos, etc.

Os respondentes são uma corrente de profissionais de muita valia para mitigar preconceitos e desigualdades nas organizações.

Referências bibliográficas

Abers, R. N. & Keck, M. (2013). Practical Authority: Agency and Institutional Change in Brazilian Water Politics. New York, NY: Oxford University Press.

Allen, J. (2007). Pragmatism and Power, or the Power to Make a Difference in a Radically Contingent World. Geoforum, 39 (4), 1613–1624.

Latour, B. (1986). The Powers of Association. In Law, J. (Ed.), Power, Action and Belief: A New Sociology of Knowledge? (pp. 264-280). London: Routledge & Kegan Paul.

Fligstein, N. (2001). Social Skill and the Theory of Fields. Sociological Theory, 19 (2), 105– 25.

______. (2008, July). Theory and Methods for the Study of Strategic Action Fields. In Institutional Development and Change Conference, Chicago: Northwestern University.

Foucault, M. (2000). The Subject and Power. In Michel Foucault: Power, edited by James D. Faubion. New York: The New Press.



* Agradeço mui carinhosamente às/aos profissionais integrantes do Comitê de Secretariado do Distrito Federal que atenderam ao pedido de responder à pergunta proposta. Em especial à/ao: Jéssica, Nayara, Ironeide, Rubiara, Eduardo, Jackeline, Leone, Grasiane, Val, Mirian, Hyngrid, Marilene, Layane, Keysa, Pâmela, e Fabi Rogers.


* Parte considerável da escrita desta seção foi publicada no paper “O que torna um conselho judicial poderoso? Críticas à literatura recente”: Nascimento, M. I. B. (2018, Abril). O que torna um conselho judicial poderoso? Criticas à literatura recente. Anais do Encontro da Administração da Justiça, Brasília, DF, Brasil, 1, pp. 1-15.

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